Por Juliana
Muita gente jura que estava vendo Dragon Ball Z quando a TV brasileira entrou em plantão para mostrar os atentados de 11 de setembro de 2001. Soa vívido, quase cinematográfico. Mas é memória falsa. Nem Band, dona dos direitos do anime na época, nem a Globo exibiam o desenho naquele momento. E os arquivos das emissoras confirmam: não houve interrupção de DBZ naquele dia.
Comecemos pelos fatos. A Band, que tinha os direitos de exibição do anime, informa que não transmitiu episódio algum de Dragon Ball Z em 11/9/2001. Isso por si só desmonta a lembrança que atravessa gerações. Do lado da Globo, o acervo da emissora, consultado em levantamento do G1 com o time de arquivo, mostra que o canal interrompeu a programação na faixa infantil, mas não para cortar nenhum anime japonês.
Na manhã daquele 11 de setembro, a Globo exibia Bambuluá, com Angélica. Por volta de 9h50 (horário de Brasília), entrou um primeiro boletim, lido por Carlos Nascimento, com 1 minuto e 24 segundos. Era cedo demais para certezas: falava-se em incêndio numa torre; o segundo avião ainda não tinha atingido o World Trade Center. O programa voltou com o quadro Garrafinha, foi para os comerciais e não retornou. A partir dali, a cobertura ocupou o resto da manhã e avançou pela tarde.
O que estava previsto na grade? Bambuluá iria das 9h20 às 11h55. Ou seja, o intervalo em que a Globo quebrou a programação para ir de vez com o jornalismo era justamente o período do infantil. Dragon Ball Z não fazia parte do roteiro do canal naquele dia e nem daquela faixa.
Em resumo, a manhã na TV aberta brasileira seguiu esta linha:
O detalhe do horário também ajuda a dar contexto. O primeiro impacto em Nova York foi às 8h46 no horário local, 9h46 em Brasília. O segundo, às 9h03 lá, 10h03 aqui. A TV brasileira estava no meio da programação matinal infantil quando a notícia explodiu. E é justamente aí que a confusão nasceu.
Se não aconteceu, por que tanta gente lembra como se tivesse visto? A resposta passa pelo que ficou conhecido como Mandela Effect. O termo popularizou-se a partir da crença, espalhada por anos, de que Nelson Mandela teria morrido na prisão nos anos 80. Milhares de pessoas “se lembravam” disso. Não era verdade. O nome pegou para descrever lembranças coletivas erradas que parecem muito reais.
Do ponto de vista da psicologia, não há mistério místico. Memória não é um vídeo guardado num HD. Ela é reconstruída sempre que a acessamos. Quando revisitamos um momento, o cérebro preenche lacunas com pistas do contexto, conversa com outras memórias parecidas e reencaixa tudo. É aí que a costura pode trocar linhas.
Três peças costuram essa falsa lembrança ligada ao 11 de Setembro:
Tem também o fator emoção. O 11 de Setembro foi um choque global. Em situações de alto impacto, a gente grava flashes muito fortes: um som, um cenário, uma tela ligada. Esses pontos de luz viram âncoras. Com o passar dos anos, o cérebro reconstrói o resto da cena ao redor delas, nem sempre com peças originais.
Outro detalhe que engana: DBZ teve diferentes exibições ao longo do tempo, em canais e horários variados. Muita gente assistia pela manhã antes da escola; outros, à tarde ou à noite, em reprises. Essa elasticidade da rotina abre espaço para sobreposições. Você lembra do hábito (ver DBZ cedo) e do fato (plantão do 11/9 de manhã) e, pronto, conecta as duas coisas num só filme.
Não é “coisa de internet”. O fenômeno é anterior às redes, mas ganhou turbo com elas. A dinâmica de timeline transforma coincidências em certezas. Basta uma thread convincente ou um vídeo nostálgico para transformar hipótese em memória coletiva. E, quando alguém discorda, a maioria responde: “Eu lembro claramente”. A convicção vira prova — só que não é.
Quer um paralelo? Há versões diferentes de versos populares (“Batatinha quando nasce…”), nomes de marcas lembrados com letras trocadas, e logotipos que juramos ter visto de outro jeito. São microenganos comuns, que mostram como a cabeça simplifica, normaliza e preenche espaços vazios.
Então, como separar lembrança de fato? Documentos. Arquivos. Grade de programação. É chato, mas funciona. No caso do 11/9, a checagem está feita: a Band diz que não exibiu DBZ naquele dia; o acervo da Globo mostra que a interrupção pegou Bambuluá e que a cobertura seguiu contínua; e a grade prevista confirma que o anime não faria parte daquela manhã.
Se a sua memória continua “vívida demais”, vale um exercício simples. Pergunte a si mesmo: eu lembro da cena ou lembro de ter ouvido essa cena? Eu consigo descrever o cenário (móveis, horário, quem estava comigo) ou só o momento do corte? Eu lembro do canal pela vinheta ou pela lógica do que “fazia sentido” eu ver? Quanto mais perguntas assim você responde, mais o quebra-cabeça para de se encaixar à força.
Também ajuda ter em mente que memória se edita com o tempo. Toda vez que você conta uma história, ela se cristaliza um pouco diferente. A versão mais recente vira a dominante. Compartilhar um relato muitas vezes não o torna mais verdadeiro — só mais familiar.
Para quem cresceu com a TV aberta, é natural atrelar grandes eventos a programas marcantes. Foi assim com finais de novela, jogos históricos e coberturas urgentes. A cultura pop fornece a trilha sonora do cotidiano. Não espanta que o choque do 11 de Setembro busque uma moldura à altura — e DBZ, na virada do milênio, era essa moldura afetiva.
Se você quer checar lembranças parecidas, aqui vai um passo a passo prático:
Fica a lição: é possível ter uma lembrança forte e, ainda assim, estar errado. E tudo bem. Não é sobre acusar ninguém de mentir. É sobre entender como nossa cabeça funciona e por que histórias viram consenso sem ter passado pelo crivo dos fatos.
No fim, a narrativa da interrupção de Dragon Ball Z no 11 de Setembro é boa justamente porque parece plausível. A manhã era de desenhos. O país ficou grudado na TV. O anime era onipresente no papo da escola. Junte as peças e a história se escreve sozinha. Só que, quando você abre os arquivos, a cola não segura.
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