Dragon Ball Z não foi interrompido no 11 de Setembro: por que tanta gente lembra o contrário

Juliana Sousa - 12 set, 2025

Por Juliana

Muita gente jura que estava vendo Dragon Ball Z quando a TV brasileira entrou em plantão para mostrar os atentados de 11 de setembro de 2001. Soa vívido, quase cinematográfico. Mas é memória falsa. Nem Band, dona dos direitos do anime na época, nem a Globo exibiam o desenho naquele momento. E os arquivos das emissoras confirmam: não houve interrupção de DBZ naquele dia.

O que realmente foi ao ar em 11 de setembro de 2001

Comecemos pelos fatos. A Band, que tinha os direitos de exibição do anime, informa que não transmitiu episódio algum de Dragon Ball Z em 11/9/2001. Isso por si só desmonta a lembrança que atravessa gerações. Do lado da Globo, o acervo da emissora, consultado em levantamento do G1 com o time de arquivo, mostra que o canal interrompeu a programação na faixa infantil, mas não para cortar nenhum anime japonês.

Na manhã daquele 11 de setembro, a Globo exibia Bambuluá, com Angélica. Por volta de 9h50 (horário de Brasília), entrou um primeiro boletim, lido por Carlos Nascimento, com 1 minuto e 24 segundos. Era cedo demais para certezas: falava-se em incêndio numa torre; o segundo avião ainda não tinha atingido o World Trade Center. O programa voltou com o quadro Garrafinha, foi para os comerciais e não retornou. A partir dali, a cobertura ocupou o resto da manhã e avançou pela tarde.

O que estava previsto na grade? Bambuluá iria das 9h20 às 11h55. Ou seja, o intervalo em que a Globo quebrou a programação para ir de vez com o jornalismo era justamente o período do infantil. Dragon Ball Z não fazia parte do roteiro do canal naquele dia e nem daquela faixa.

Em resumo, a manhã na TV aberta brasileira seguiu esta linha:

  • Band: detentora dos direitos de DBZ, não exibiu episódio do anime em 11/9.
  • Globo: interrompeu Bambuluá por volta de 9h50 com um boletim curto e, minutos depois, emendou cobertura contínua dos atentados.
  • Programação regular: a faixa infantil foi suprimida pela notícia; DBZ não estava previsto ali.

O detalhe do horário também ajuda a dar contexto. O primeiro impacto em Nova York foi às 8h46 no horário local, 9h46 em Brasília. O segundo, às 9h03 lá, 10h03 aqui. A TV brasileira estava no meio da programação matinal infantil quando a notícia explodiu. E é justamente aí que a confusão nasceu.

Por que nossa memória cria essa lembrança tão vívida

Por que nossa memória cria essa lembrança tão vívida

Se não aconteceu, por que tanta gente lembra como se tivesse visto? A resposta passa pelo que ficou conhecido como Mandela Effect. O termo popularizou-se a partir da crença, espalhada por anos, de que Nelson Mandela teria morrido na prisão nos anos 80. Milhares de pessoas “se lembravam” disso. Não era verdade. O nome pegou para descrever lembranças coletivas erradas que parecem muito reais.

Do ponto de vista da psicologia, não há mistério místico. Memória não é um vídeo guardado num HD. Ela é reconstruída sempre que a acessamos. Quando revisitamos um momento, o cérebro preenche lacunas com pistas do contexto, conversa com outras memórias parecidas e reencaixa tudo. É aí que a costura pode trocar linhas.

Três peças costuram essa falsa lembrança ligada ao 11 de Setembro:

  • Fusão de eventos próximos: 11/9 caiu numa manhã de TV infantil. Muita gente via desenhos antes de ir para a escola. Na virada dos anos 1990 para 2000, DBZ era febre. É fácil o cérebro colar “manhã + desenho + notícia urgente” e completar com o anime mais marcante da época.
  • Confusão de fonte: lembrar o canal certo é mais difícil do que parece. Globo exibia Bambuluá; outras emissoras tinham blocos de desenhos; a Band era a casa de DBZ. Com o tempo, a mente mistura “onde vi” com “o que eu costumava ver”.
  • Repetição social: memes, relatos de amigos e posts nas redes reforçam a história. Quando ouvimos a mesma versão várias vezes, a confiança na lembrança cresce — mesmo sem prova. É a força da repetição.

Tem também o fator emoção. O 11 de Setembro foi um choque global. Em situações de alto impacto, a gente grava flashes muito fortes: um som, um cenário, uma tela ligada. Esses pontos de luz viram âncoras. Com o passar dos anos, o cérebro reconstrói o resto da cena ao redor delas, nem sempre com peças originais.

Outro detalhe que engana: DBZ teve diferentes exibições ao longo do tempo, em canais e horários variados. Muita gente assistia pela manhã antes da escola; outros, à tarde ou à noite, em reprises. Essa elasticidade da rotina abre espaço para sobreposições. Você lembra do hábito (ver DBZ cedo) e do fato (plantão do 11/9 de manhã) e, pronto, conecta as duas coisas num só filme.

Não é “coisa de internet”. O fenômeno é anterior às redes, mas ganhou turbo com elas. A dinâmica de timeline transforma coincidências em certezas. Basta uma thread convincente ou um vídeo nostálgico para transformar hipótese em memória coletiva. E, quando alguém discorda, a maioria responde: “Eu lembro claramente”. A convicção vira prova — só que não é.

Quer um paralelo? Há versões diferentes de versos populares (“Batatinha quando nasce…”), nomes de marcas lembrados com letras trocadas, e logotipos que juramos ter visto de outro jeito. São microenganos comuns, que mostram como a cabeça simplifica, normaliza e preenche espaços vazios.

Então, como separar lembrança de fato? Documentos. Arquivos. Grade de programação. É chato, mas funciona. No caso do 11/9, a checagem está feita: a Band diz que não exibiu DBZ naquele dia; o acervo da Globo mostra que a interrupção pegou Bambuluá e que a cobertura seguiu contínua; e a grade prevista confirma que o anime não faria parte daquela manhã.

Se a sua memória continua “vívida demais”, vale um exercício simples. Pergunte a si mesmo: eu lembro da cena ou lembro de ter ouvido essa cena? Eu consigo descrever o cenário (móveis, horário, quem estava comigo) ou só o momento do corte? Eu lembro do canal pela vinheta ou pela lógica do que “fazia sentido” eu ver? Quanto mais perguntas assim você responde, mais o quebra-cabeça para de se encaixar à força.

Também ajuda ter em mente que memória se edita com o tempo. Toda vez que você conta uma história, ela se cristaliza um pouco diferente. A versão mais recente vira a dominante. Compartilhar um relato muitas vezes não o torna mais verdadeiro — só mais familiar.

Para quem cresceu com a TV aberta, é natural atrelar grandes eventos a programas marcantes. Foi assim com finais de novela, jogos históricos e coberturas urgentes. A cultura pop fornece a trilha sonora do cotidiano. Não espanta que o choque do 11 de Setembro busque uma moldura à altura — e DBZ, na virada do milênio, era essa moldura afetiva.

Se você quer checar lembranças parecidas, aqui vai um passo a passo prático:

  • Procure a grade de programação do dia e do horário exatos. Muitas emissoras e jornais mantêm guias arquivados.
  • Busque telejornais e boletins do período. Eles costumam registrar a entrada em plantão e a duração das coberturas.
  • Compare mais de uma fonte. Um arquivo isolado pode ter falhas; cruzar dados reduz erros.
  • Desconfie de “eu lembro perfeitamente”. Não é prova. Aponte para documentos, não só relatos.

Fica a lição: é possível ter uma lembrança forte e, ainda assim, estar errado. E tudo bem. Não é sobre acusar ninguém de mentir. É sobre entender como nossa cabeça funciona e por que histórias viram consenso sem ter passado pelo crivo dos fatos.

No fim, a narrativa da interrupção de Dragon Ball Z no 11 de Setembro é boa justamente porque parece plausível. A manhã era de desenhos. O país ficou grudado na TV. O anime era onipresente no papo da escola. Junte as peças e a história se escreve sozinha. Só que, quando você abre os arquivos, a cola não segura.

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